A União Europeia se prepara para endurecer as regras para a regulação do mercado de games nos países-membros do bloco, com base em um relatório que visa estipular regras mais rígidas, visando a proteção dos consumidores, em especial, crianças e jovens.
Em janeiro, o parlamento aprovou a adoção de um relatório da Comissão Europeia, que sugere medidas para controlar mais firmemente práticas como designs que estimulam o vício, o gold farming, monetização e loot boxes, além de propor um mecanismo para verificação da idade do jogador, similar ao adotado na China.
O relatório da Comissão Europeia, aprovado com 577 votos a favor, 56 contra e 15 abstenções, foi redigido pela deputada espanhola Adriana Maldonado López, membro do Comitê para o Mercado Interno e Proteção ao Consumidor.
O documento estipula uma série de regras que definem parâmetros não só para a promoção e marketing, mas restringem até mesmo o desenvolvimento dos games, ao estipular quais elementos são aceitáveis, e os que devem ser evitados.
No documento, López cita que as regras devem seguir o exemplo do PEGI (Pan European Game Information), o sistema europeu de classificação etária de jogos, a versão local do ESRB norte-americano, adotado até mesmo fora do bloco (Israel e Noruega), mas, por outro lado, vários países da UE não o implementam (Croácia, Hungria), ou o usam ao lado de regras próprias (Alemanha).
López e outros membros do Parlamento favoráveis à medida acreditam que a UE deve estabelecer um conjunto de regras mais rígidas e uniformes para a regulação do mercado de games dentro do bloco, a ser adotado pelos 27 países-membros, o que, consequentemente, pode levar a mudanças em escala global, assim como ocorreu com a implementação da GDPR.
As ações propostas pelo relatório da Comissão Europeia se concentram nos seguintes pontos:
Classificação etária e verificação de idade
Um das primeiras medidas visa estabelecer o PEGI como o sistema de classificação etária de jogos em todo o bloco europeu, de forma obrigatória, a todos os 27 países-membros, abolindo sistemas próprios por estes mantidos, e acabar com discrepâncias e adequações locais; Finlândia e Portugal, por exemplo, usaram por anos classificações próprias para certas faixas de idade, alinhadas com a classificação local de filmes, e se adequaram ao padrão do sistema somente em 2007 e 2021, respectivamente.
As notificações em games e propaganda (outdoors, comerciais, anúncios na web, etc) deverão se tornar mais claras, com informações sobre o conteúdo dos games (temas, faixa etária, compras no app, anúncios, etc) voltadas principalmente para os pais.
Um dos pontos polêmicos do relatório discorre sobre a criação de um sistema on-line para verificação de identidade do jogador, a fim de checar se ele possui idade para consumir certos games on-line.
Embora similar ao adotado pela China, ao menos em um primeiro momento, ele não estipula limite de horas diárias que um jovem terá para jogar, mas pode limitar seu acesso a títulos inadequados à sua faixa etária, ou a compra de itens e dinheiro virtual.
Proteção ao consumidor
O relatório pede que a UE endosse regras para a proteção da privacidade dos jogadores em games on-line, a fim de estabelecer o que entende como um “padrão mínimo”.
Esta medida tem como meta reduzir o assédio e bullying digital, minimizando ações de indivíduos para identificar e assediar jogadores, na internet e fora dela.
Ele também cita a elaboração de um relatório detalhado, com base em dados coletados de games e jogadores, para verificar informações como: tempo médio em que um europeu passa jogando, quanto ele gasta com recursos de monetização (loot boxes, dinheiro virtual, etc.), e quais são os efeitos sócio-psicológicos, para com base nessas informações, basear futuras medidas a serem tomadas.
Outro ponto controverso, o relatório considera o relatório da OMS que classifica o vício em games como um distúrbio, e, assim, desenvolvedoras deverão ser “desestimuladas” a implementar designs que estimulem o jogador a continuar jogando; gacha games, por exemplo, criados com elementos para fazer o gamer não largar o controle ou o celular até conseguir o que deseja (o que envolve continuar gastando), poderão ser profundamente afetados com esta medida.
A Comissão também anota a possibilidade de contatar desenvolvedoras, estúdios e distribuidoras responsáveis por games on-line que miram primariamente no público menor de idade, para que estes implementem recursos para avaliação do impacto desses títulos em crianças, para evitar designs que causem reações consideradas negativas pela UE.
Por fim, o documento propõe medidas regulatórias para restringir a distribuição de certos conteúdos em games que permitem ao jogador compartilhar suas criações com os demais (Roblox, por exemplo), para que jogadores, seja quem cria ou quem consome, especialmente menores, não compartilhem/consumam conteúdos ilegais.
Monetização em games
Aqui o documento da Comissão Europeia pega pesado. De cara, ele propõe uma reavaliação das medidas em vigor para controle de recursos de monetização em games, que incluem loot boxes, passes de batalha, compras de dinheiro virtual ou itens, cosméticos ou não, se estas são suficientes para evitar abusos por parte dos desenvolvedores. Em caso negativo, a legislação deverá ser endurecida.
O método que jogos usam para oferecer tais itens também deverá passar por escrutínio, o que deve envolver a apresentação com designs atraentes, promoções e outros, para incentivar o jogador a gastar dinheiro real.
A UE deverá reforçar a proteção dos usuários, em especial os menores de idade, e recomendar estúdios a não abusarem.
Há também medidas contra práticas viabilizadas pela monetização de games, e uma delas é o gold farming, quando pessoas jogam títulos on-line para acumular grandes quantidades de dinheiro virtual, e os revendem a outros jogadores.
Embora esta prática levante questões, pois são consideradas fontes de renda em países pobres, em outros casos, ela está associada a condições análogas à escravidão.
Nisso, o relatório propõe uma análise profunda do tema, para verificar sua conexão com crimes financeiros ou contra os direitos humanos, prevendo inclusive criminalizar totalmente o gold farming.
O combate à chamada skin gambling, que usa itens cosméticos raros de games como moeda em apostas e jogos de azar, é mais direto, e a meta da Comissão Europeia é banir completamente a prática, considerara ilegal, impedindo jogadores de usar tais itens de outra forma que não seja dentro dos jogos, em suas próprias contas; venda e troca dos mesmos também seria proibida.
Compras contínuas em games, como passes de batalha e assinaturas de serviços acessórios, como o Clube Fortnite, deverão ter opções facilitadas para o cancelamento dos pagamentos recorrentes, e informações muito claras de como fazê-lo.
Apoio à indústria local de games
O documento da Comissão Europeia dedica uma parte ao fomento do mercado europeu de games, como não podia deixar de ser.
Ele propõe a criação de uma estratégia local para o fortalecimento da indústria local, investindo não só nos medalhões do continente (Ubisoft, THQ Nordic, CD Projekt Red), mas também em estúdios e desenvolvedores independentes.
O plano visa posicionar a Europa como um dos mercados líderes do setor, não apenas consumidor, mas também exportador de games, e reduzir a dependência de conteúdo de outras regiões, especialmente dos estúdios norte-americanos e chineses.
O relatório também prevê apresentar iniciativas que aumentam a inclusão, representatividade e acessibilidade em games, e sugere a criação de uma nova premiação para o setor de games, exclusiva para produções europeias.
Agora, o outro lado
Em nota conjunta ao site GamesIndustry.biz, as Federações de Software Interativo e de Desenvolvedores de Games da Europa expressaram preocupação acerca das novas regulações propostas, ao alegarem que elas podem dificultar o financiamento de jogos, quando estes tiverem que seguir normas de conduta na hora de projetar novos títulos:
“As leis europeias de proteção ao consumidor são extensas e flexíveis, no que tange cobrir e sancionar práticas consideradas enganosas, injustas ou agressivas (…). Conforme reconhecido por vários estudos, o problema reside na aplicação insuficiente, o que prejudica a eficácia do quadro jurídico.
Nossa indústria está comprometida com uma experiência de consumo de games justa e transparente. Os jogadores europeus têm mais opções de jogos incríveis do que nunca, graças à maior variedade de modelos de negócios que a indústria desenvolveu. Os reguladores devem proteger o direito de acesso a esses produtos culturais, mantendo o alto nível europeu de proteção ao consumidor.”
De qualquer forma, as novas normas ainda não possuem força de lei, e devem demorar a serem implementadas, mas é bem provável que entrem em vigor em algum momento.
Quando (não se) isso acontecer, as consequências não serão sentidas apenas na Europa, mas em todo o mercado global de games, como ocorrido antes em outras ocasiões, quando a União Europeia estipulou regras que empresas multinacionais acharam mais simples implementar a todos, do que apenas localmente.
Fonte: GamesIndustry.biz